É este o conto de Gregório Bezerra a que nos referimos na postagem anterior:
Meu primo era "mestre carreiro" no engenho. Pediu à minha mãe que eu fosse trabalhar junto a ele como ajudante. Ela não se opôs, mas ponderou que eu era muito novo e pequeno para trabalhar de "ajudante de carreiro", visto que eu nem podia com um feixe de cana. Meu primo prometeu ajudar-me naquilo que eu não pudesse fazer. Fiquei saltitando de alegria. Ia andar em cima de um carro de boi, chamar boi com uma vara de ferrão. Ia passar muito sebo e azeite nos eixos das rodas e nos mancais. Isso para o carro ranger e cantar bonito. Tudo estava para mim. Ia ganhar uma vara de ferrão para mandar nos bois e quando ficasse maior ia ser "o maior carreiro do mundo". Além do mais, ia ganhar duzentos reis por dia. "Eita dinheirão". Seria o menino mais bem pago do engenho. E mais admirado. Não somente pelo salário, mas sobretudo porque era ajudante de carreiro e tangia bois de carro. Tudo isso me fervia na cabeça noite e dia.
Meus deveres consistiam em levantar-me de madrugada para ir ao campo juntar os bois e levá-los para o galpão, vigiá-los até a chegada de meu primo para encangá-los e dar começo à jornada nos cortes de cana a fim de transportá-los ao engenho para a moagem. A outra tarefa era carregar os feixes de cana até o carro, enquanto meu primo enchia-o com feixes de cana mais próximos. Eu sentia dificuldades em transportá-los porque eram muito pesados para a minhas forças, mas os levantava e depois abaixava-me; e puxava-os para minha cabeça e os transportava-os até o carro.Vez por outra, escorregava nas palhas ou nos olhos de cana e caía com feixe e tudo. Levantava-me novamente e fazia a mesma manobra, prosseguindo no meu lufa-lufa de vaivém o dia inteiro e até nas noites de luar. À noite, estava cansado. Meu corpo magricelo só pedia chão e esteira para dormir.
Aqui começa uma graciosa prova de paciência de minha mãe para comigo. Alta madrugada minha mãe chamava-me:
_ Grilo! Ô Grilo!
_ Que é mãe?
_ Acorde meo fio. O galo já cantou tréis vêi!
Eu ficava dormindo. Ela vinha me levantava da esteira com toda ternura. Lavava-me o rosto e dava-me um gole de "pinga", pois, segundo ela, servia para dar-me coragem e espantar o frio. Realmente, eu tomava o gole de "pinga" e o sangue invadia-me o rosto e as orelhas.
Minha mãe ia-me empurrando devagarinho até até a porta da rua , ás vezes debaixo da chuva. Mas com chuva ou sem chuva era uma tarefa que eu não podia deixar de cumprir. Por incrível que pareça, a chuva era melhor que o orvalho; esse dava-me caimbras nos pés e nas mãos, que me doíam desesperadamente; por outro lado, aquela me tirava a caimbra. Mas com uma ou com outro, eu sempre ficava molhado. Quando chovia era pior, porque os bois subiam para o alto dos morros. Todavia, à medida que eles iam-se habituando comigo, bastava chamar um deles pelo nome e todos os demais vinham-se juntar-se a este. Aproximavam-se em grupo e isto me facilitava o trabalho.
No galpão descobri uma dependência cheia de milho que era do senhor de engenho. Fiz o seguinte raciocínio:
_ O milho é do coronel. Os bois também são dele. Não faz mal que eu tire um pouco do milho para dar aos bois para comerem.
Daí por diante todas as madrugadas os bois tinham uma suculenta ração de milho para comer e comiam gostosamente. Foi ótimo. Deste dia para a frente, em vez de ir procurá-los no campo, eram os bois que iam esperar-me no galpão em busca de sua ração. Ficamos amigos. Eles comendo e eu junto deles aquecendo-me do frio e aspirando o seu hálito adocicado, que se desprendia de suas grandes narinas. Além disso, durante o dia, nas idas e vindas entre os canaviais e o engenho, iam arrancando milho e feijão verde que encontrava na beirada dos caminhos para eles comerem durante o enchimento do carro. Creio que bois de carro nunca comeram tão bem como os bois Cara Preta, Ponta Grossa, Malhado e Lamacento. Eram possantes e combinavam-se no esforço comum, principalmente nas subidas e atoleiros. Eram cuidadosos, pacientes e mansos.
Em minha tarefa, o maior trabalho cabia mesmo à minha mãe, ou seja, o de acordar-me naquele sono profundo.
Eu chegava quase sempre à noite e muito cansado. Arriava-me na esteira já dormindo. Minha mãe me punha no colo e lavava-me os pés, o rosto e ás vezes até me dava um banho completo. Contudo, eu não acordava. Mas o "duro" mesmo para ela era levantar-me de madrugada. Muitas vezes eu tinha a impressão de ter deitado naquela hora. E minha mãe a chamar-me:
_ Grilo! Ô Grilo! Acorde meo fio! O galo já cantô quatro vêiz!
_ Sim, mãe. Respondia e continuava dormindo.
Lá vinha ela levantar-me. Sacudia-me delicadamente para um e outro lado até que eu abrisse os olhos. Lavava meu rosto, trazia-me o já costumeiro gole de pinga e lentamente ia-me empurrando até a porta de saída. Com muita brandura, docemente, empurra-me para fora, dizendo:
_ Vai, meo fiinho. tu és um hominho. Vai com a graça de Deus.
Isto se repetia diariamente. Era o meu despertador infalível. E o galo era o despertador dela.
Comentário: Um quadro do trabalho infantil que se transfunde em expressão poética. É fundamental sublinhar que o trabalho aparece como valor e não como exploração e nele brilha a solidariedade humana. Incita a uma democratização que reduz o espaço histórico das manobras políticas dos de cima e a torna uma realização da maioria, ou seja, da massa do povo, numa luta sofrida e permanente.