quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Nº 28: Unidade, multiplicidade, unidade


Estivemos relendo os blogs já publicados e fazendo outras pesquisas para os próximos, por isso, atrasamos um pouco com este número e, de acordo com nossa seleção, resolvemos o seguinte:
Voltamos à temática da Prosperidade, lançando um poema da autoria de Anna, "Sintaxe do pronome meu", que sempre causa uma grande polêmica.




Não tenho terras


Não tenho árvores


Não tenho casas


Não tenho cama


Não tenho livros


Não tenho família


Não tenho computador


Não tenho celular


Não tenho roupa


Não tenho pão


Não tenho ninguém


Nem sequer um copo d'água


Nem a luz da imaginação




Tudo é dádiva de Deus


que retenho por enquanto


no encanto do momento e do entretanto,


pertence a toda a humanidade.


Esta é a Lei: não existe propriedade.


Mas existe prosperidade.




Não me importo se a rima não agrade.


Quando dizemos "meu",


prendemos o alheio numa grade.




Melhor que suar para competir


é harmoniosamente soar para construir.




Não tenho flores


só tenho amores


só tenho amores.




Sou filha do Universo


e o Universo toma conta de mim.




Será que estamos desprezando o individual? Em absoluto, não estamos. Mas, não podemos esquecer a incalculável influência do coletivo.


Yung foi o primeiro que falou sobre o inconsciente coletivo e deu o nome de self (si mesmo) à totalidade da psique e não apenas a um centro profundo. O confronto entre o consciente e o inconsciente produz um alargamento do mundo interior, do qual resulta que o centro da personalidade, construída por um longo labor, não coincida com o ego. O homem torna-se ele mesmo, um ser completo, composto de consciente e inconsciente, incluindo aspectos claros e escuros, masculinos e femininos, seu mundo abraça valores mais vastos, absorvidos principalmente do imenso patrimônio que a espécie penosamente acumulou em estruturas fundamentais.


O desenvolvimento da personalidade progride em direção a um centro, um núcleo energético que se revela existente no fundo mais íntimo da psique. É um estudo muito complexo e inesgotável. Por ora, só queremos esclarecer que no self podemos também reconhecer nossa própria sombra.


Penetra-se, assim, num reino tão perigoso quanto as profundezas do oceano, pois aí moram, como afirmamos, aspectos sombrios de nossa personalidade, por exemplo, o medo, a raiva, a ansiedade, a violência. Para combatê-los, o caminho mais aconselhado é a religião. A religião, porém, não consegue derrotar a sombra, muitas vezes, a torna mais poderosa. Para se combater o Mal, lembre-se, tem que se desenvolver a ideia e os procedimentos que nos levam ao Bem. Temos que jogar luz em cima das trevas, colocar em prática nosso potencial divino, tornar nossa consciência iluminada, em cuja presença toda escuridão automaticamente desaparece.


O self é o eu real, ele está além do Bem e do Mal. A sombra perde o poder quando a consciência para de se dividir. É bem verdade que temos de formar nosso self individual, com necessidades, impulsos, tendências, desejos, sonhos e temores que nos são especiais mas que não nos separam do mundo. A noção que criamos nossos selfs isolados, separados, é uma ilusão. Sempre penetramos um vasto reservatório humano de aspirações, sentimentos, mitos. Repetimos: esta inconsciência compartilhada é onde reside a sombra, que só será má, se não soubermos tratá-la. Compartilhar com todo o mundo é fundamental para nossa sobrevivência. Sabe-se de sobra que nenhum homem é uma ilha, ele pode sempre declamar a "Sintaxe do pronome meu".


Podemos notar a presença de nosso self coletivo em diversas oportunidades. Por exemplo, quando nos identificamos com nossa nacionalidade, quando um desastre cometido em lugares e com pessoas que não conhecemos, nos afeta pessoalmente, quando nos oferecemos como voluntários numa comunidade, quando entramos num partido político, quando pedimos apoio da família e amigos etc.


O poeta Mário Quintana nos ajuda e entender o exposto neste blog, com a seguinte afirmativa:


"Olho em redor do bar onde escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha, após caninha. Nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando os ploblemas dele, João da Silva. Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo."


O inconsciente é nosso destino, dele não podemos livrar-nos. Temos o direito de escolher, mas o inconsciente é que nos faz escolher. E não se anula o consciente, que nos permite o livre arbítrio para vivermos o que foi escolhido da melhor maneira.


Temos que decidir ser múltiplos, sem perder nossa unidade com o Todo, de onde viemos. A individualização é dramática. Corremos o risco de nos perdermos na prostiruição da aparência.


Gerd A. Bornheim em O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1975, p.77, cita um pensador pré-socrático, Anaximandro: "Todas as coisas se dissipam onde tiveram sua gênese, conforme a culpabilidade; pois pagam umas às outras castigo e expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo." Explicando-se diz que Anaximandro nos apresenta a multiplicidade de uma forma altamente dramática, como culpa e injustiça. A isenção da culpa e da injustiça se faz através da reintegração na unidade, que resolve em si o múltiplo.


O mesmo teórico continua na p. 78 do mesmo livro citado: "Para os pré-socráticos, unidade e multiplicidade são formas de ser, e o ser é a 'physis', a natureza. A 'physis' estendo-se ao todo do real, permite compreender unidade e multiplicidade, pois ambas são interiores à natureza. Vale dizer que a 'physis' está presente em tudo o que é, se manifesta no real, mas de diversas maneiras . E o modo de ser da multiplicidade, na medida em que se afirma como tal e não reconhece a unidade no ser, faz com que troque o ser pela aparência do ser. No fragmento 112, Heráclito diz que a sabedoria consiste em 'agir conforme a natureza, ouvindo a sua voz.' A recusa em ouvir a voz da 'physis' ou a teimosia da multiplicidade que se afirma como independente e se recusa a confessar a unidade de todas as coisas , é o princípio do pseudos, do erro gerador de culpa e injustiça (Heráclito,fr. 50). Nesse sentido é que a aparência deve voltar a integrar-se no ser . A compreensão da sabedoria como um saber escutar a voz do ser é patrimônio comum da filosofia pré-socrática. "


No próximo jornal, apresentaremos alguns poemas de Augusto dos Anjos, autor que ao visualizar a unidade se excita exageradamente, não sabendo entrosá-la com a multiplicidade, tornando-se trágico. as asas são de cera e se derretem como as de Ícaro.

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